Uma noite memorável com Wisnik e Guinga

Por Lauro Lisboa Garcia – 09/12/2014

Fui convidado pra acompanhar a 4ª Mostra Cantautores em Belo Horizonte e tive uma bela surpresa na noite de abertura ontem, quando se completaram 20 anos da morte de Tom Jobim, referência das mais importantes para os artistas que se apresentaram no palco do Teatro Oi Futuro Klauss Vianna. Dois são compositores consagrados que admiro muito (Zé Miguel Wisnik e Guinga) e os dois que abriram os shows deles, respectivamente tocando os mesmos instrumentos dos mestres (piano e violão), são jovens promissores: o pianista, compositor e arranjador mineiro Rafael Martini, que lançou o CD de estreia, “Motivo”, em 2012, pelo Núcleo Contemporâneo, e Pedro Carneiro, compositor, violinista e produtor carioca, que está terminando de gravar o primeiro álbum com produção de Chico Neves.

Guinga disse que detectou em Martini – que apresentou quatro canções – algo de Debussy, mas além da música de concerto, também notei nele certas inflexões que remetem a compositores brasileiros que têm teclados como instrumento condutor, como Ivan Lins e Wagner Tiso. Parceiro e discípulo de Guinga, Carneiro voltou ao palco para cantar com ele a intrincada Nítido e Obscuro. Nervoso como sempre, Guinga, que não é muito amigo de palco, a certa altura disse: “O bom da música brasileira é que a gente pode atirar pra tudo quanto é lado”. Carneiro faz isso de maneira surpreendente: traz em seu toque de violão a cadência do samba sincopado, a tradição do bom humor de cronistas urbanos como Noel Rosa nas letras narrativas e até algo do estilo do trovador baiano Elomar.

“Isso pra gente é uma maravilha. A gente vê que a música anda, e o que a gente acredita e que o Tom pregou, Villa-Lobos, Pixinguinha, Nazareth, Ravel, Debussy, Stravinsky, Chopin e milhares de gênios da humanidade pregaram, tem seguidores, há jovens interessados nesse tipo de música. Tem público pra isso, gente interessada, silenciosa, emocionada. É isso que faz a gente lutar cada dia e ter esperança”, disse Guinga, depois do dueto com o Carneiro.

Inédita de Guinga

Mais solto no decorrer do show, ele lembrou de episódios engraçados, das tentativas de parcerias e dos encontros com Wisnik (que voltou ao palco para cantar com ele Ilusão Real, dos dois) e desafiou o parceiro a colocar letra em uma composição inédita, que fez no sábado passado, com um único verso (“se o amor pra ela é um companheiro a mais”), “uma orientação para fazer a melodia” que cantarolou e continuou com vocalises. É que o Wisnik diz sobre “o desejo de palavra”, que vem nas composições de Guinga. Em contrapartida, o carioca disse que chorou várias vezes acompanhando da coxia “a aula maravilhosa sobre canção” que ele deu. “É uma responsabilidade muito grande tocar depois dele, mas ao mesmo tempo é um prazer imenso também. E estou tentando fazer um jogo de sedução com ele, pra que ele letre outras músicas minhas.”

Depois dessa canção inédita, ele pediu licença para a plateia, pra mostrar outra música sem letra, “Pucciniana”, que abre seu mais recente CD, “Roendopinho”, o primeiro de violão solo e instrumental. Afinal, como ele mesmo disse, a voz humana ainda é o mais belo instrumento e no disco ele usa o vocal, sem letras, em duas faixas. “Afinal de contas, estamos aqui na casa do cantautor, e é assim que a gente tem que enfrentar nossos diabos e tentar vencer a insegurança, que é muito grande. Dá um medo terrível, mas a música tem de vencer no final, porque é ela que salva a gente mesmo.”

Guinga, que apresentou em grande parte do show canções com os parceiros mais constantes (Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro), recebeu ainda o paulista Pedro Iaco para cantar Senhorinha, apenas fazendo vocalizações, sem a letra (antes ele tinha cantado a mesma música com a belíssima letra de Paulo Cesar Pinheiro, inspirada nas filhas do parceiro), elogiou o respeito e o silêncio da platéia dizendo uma que o mineiro “é o melhor público do mundo”. Faço minhas as palavras dele: viajando pelo Brasil acompanhando festivais, em raros lugares vi platéias tão interessadas e respeitosas como vejo em Belo Horizonte.

Aqui vale a pena abrir um parêntese pra lembrar que o clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, que tem um trabalho com Guinga e se aproximou da música brasileira por causa dele, disse algo semelhante em Jericoacoara, na mesma praça onde tocou com ele dois anos atrás no bem-sucedido festival Choro Jazz. Mirabassi ficou emocionado com o silêncio e o respeito da plateia que ele e André Mehmari hipnotizaram na semana passada, atenta às notas mais sutis das sofisticadíssimas peças do projeto “Miramari”, que eles acabam de lançar em DVD.

A homenagem de Guinga a Tom Jobim veio de uma fusão de “Foi a Noite” com “Lígia”, que pediu para a plateia fazer coro. Wisnik escolheu uma das mais belas canções de Jobim com Vinicius de Moraes, Eu Sei Que Vou Te Amar, uma daquelas que ele exemplificou como relativamente simples, mas profundas.

Associações de Wisnik

Wisnik abriu e encerrou sua apresentação entoando parcerias com Jorge Mautner: “Tempo Sem Tempo”, uma daquelas canções “derramadas e sentimentais”, como ele exemplificou em sua aula-show, brilhante como de hábito, e a recente “A Liberdade é Bonita”, em ritmo de funk carioca. Para uma plateia que contava com vários músicos e compositores, como Makely Ka, Felipe Continentino, Iara Rennó, Frederico Heliodoro, Kristoff Silva e Sérgio Santos, o compositor e teórico musical paulista destacou suas parcerias com Luiz Tatit, Caetano Veloso, Marcelo Jeneci e outras só dele mesmo.

Depois de tocar uma das canções que compôs para o espetáculo de dança “Parabelo”, do Grupo Corpo, “Assum Branco”, que traz referências a clássicos de Luiz Gonzaga (“Asa Branca” e “Assum Preto”), além de cantigas de roda, Wisnik explicou como esta e outras composições suas nascem de associações com outras. “Proust dizia, por exemplo, que música a gente não escuta, a gente reescuta. Música é sempre a lembrança, a saudade de uma outra música.” Fez também associações filosóficas da criação da trilha de outra trilha para o Corpo (“Onqotô”) com o big bang que gerou o Universo, brincando com o jeito da fala mineira.

A “Trio de Efeitos”, parceria dele com Luiz Tatit, uma espécie de “foxtrot ligeiro” com três personagens, seguiu-se uma explanação sobre três tipos básicos de canção de uma concepção de relação entre música e palavra que Tatit desenvolveu. Um desses tipos é o de melodias regulares que geralmente as palavras não têm na fala coloquial. Entre os exemplos ele citou “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, um tipo de melodia ritmada que encarna nas palavras, no que se está dizendo. “O oposto é quando a música recebe uma dose de irregularidade das palavras”, caso de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa. E o terceiro tipo é a canção “passionalizante”, quando as sílabas se estendem e a melodia explora o caminho das alturas, como “Travessia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant.

O cancionista

Wisnik disse que nunca se identificou direito com a palavra “cantautor”, que é tradicionalmente euusada na Itália e nos países de língua espanhola para definir os compositores que não são grandes cantores, mas interpretam as próprias canções. “A palavra nunca me convenceu, mas aqui ela está começando a me convencer – tudo depende da forma como a palavra é usada. Aula-show também não gosto, mas uso. É pra dar nome a uma coisa que é difícil de nomear. Tenho uma amiga que diz que aula-show parece sapatênis, essas coisas. Luiz Tatit fala cancionista, que é uma palavra mais geral e que talvez sirva de todo modo pra essa pessoa que está às voltas com isso, a sílaba voadora. O compromisso dele é esse encontro da palavra com a música, que às vezes se encaixam e às vezes não. Ninguém sabe explicar o mistério de uma melodia, por exemplo.” Mais adiante, Wisnik abordou a mesma questão em relação a musicar poemas e apresentou três músicas certeiras que fez sobre versos de Gregório de Matos, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

Dele, de Guinga ou de outros compositores clássicos citados, desde as melodias mais simples até as mais elaboradas, atingiram a plateia com a profundidade do que foi exposto sobre o papel do compositor que defende suas músicas. “O cantautor é esse que tem um testemunho a dar num lugar de que gosto porque é desarmado. Por que o cantor está armado do canto, dos recursos, das técnicas. Legitima o cantor o domínio que ele tem da voz, uma coisa assim. O cantautor está dando o testemunho de uma coisa que só ele pode fazer, independentemente dos grandes intérpretes que cantem as músicas que ele faz, porque é como se ele soubesse alguma coisa do modo como se juntaram as palavras com a música – é outro mistério na canção, que é a questão da entoação”, disse Wisnik.

Citando impressões de Ed Motta, Wisnik disse que é como que a voz do cantautor estivesse no fio da navalha: “Tem uma pungência, uma verdade naquele lugar frágil e forte que está vindo do lugar onde a canção foi feita”. Foi o que Guinga comprovou na contundente interpretação de Você Você, única parceria dele com Chico Buarque.

Idealizada pelos artistas da música mineira Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes, a mostra segue até domingo com encontros e shows de compositores como Sérgio Santos, Tiganá Santana (baiano dono de bela e profunda voz), Iara Rennó (que divide a noite de hoje com a mineira Pamelli Marafon), o português JP Simões. Pablo Castro e Thiago Amud, entre outros, na Funarte MG e na Casa Uma de Cultura, além do Oi Futuro. Começou muito bem. Entre elogios mútuos, com grande senso de humor, Wisnik e Guinga falando ou em forma de canção deram valiosas contribuições para se pensar sobre música, “coisas de uma leveza profunda”, como disse o músico e teórico paulista. Guinga disse que foi pra ele uma noite histórica. Bom demais da conta.

FUNARTE MG

TEATRO OI FUTURO KLAUSS VIANA

Rua Januária, 68, Floresta (31) 3213-3084
Venda antecipada www.sympla.com.br/mostracantautores

Av. Afonso Pena, 4001, Mangabeiras (31) 3229-2979
Venda antecipada www.ingressorapido.com.br

PREÇO ÚNICO | R$10,00 (inteira) | R$ 5,00 (meia) *A meia entrada é vendida somente com a apresentação da carteirinha e/ou documentos de identificação no ato da compra;