Um grande “achamento”

Por Lauro Lisboa Garcia – 12/12/14

Thiago Amud é um prodígio – e eu, que não gosto de escrever textos jornalísticos em primeira pessoa, sinto-me como que vinculado ao desejo de revelar apenas a impactante atração intelectual que senti por ele (como me ocorreu antes com Caetano Veloso, Paulo Cesar Pinheiro, Luiz Tatit e Vitor Ramil). Achei impressionante sua apresentação na noite de ontem na 4ª Mostra Cantautores, no teatro da Funarte MG, em Belo Horizonte. Mas vamos deixar de divagação pessoal e voltar ao profissionalismo. Até porque, além de nos divertirmos muito em conversas de bar, ele não foi o único a despertar curiosidade em mim (em nós) pela liberdade de expressão. O mineiro William Serra, que abriu as funções antes dele, é um mutante de várias nuances, “uma cruza estranha (Jack) Kerouac com Paulo Vanzolini”, como sugeriu Amud.

A música de Amud te pega pelo intelecto e, ao mesmo tempo que se desenha complexa, com rigor técnico, melodias entrecortadas e letras próprias de um estudioso de História, de Sociologia e de Ciências, tem a peculiaridade de se comunicar para o bom entendimento de ouvidos atentos com senso de humor, fluência e malabarismos verbal, vocal e instrumental. Suas composições já vêm com arranjo sugerido na forma e no toque do violão. Melodias, letras imagéticas e temas (em que o carnaval, a força das montanhas, a inevitabilidade da morte, referências históricas, o enredo do tempo, a degradação humanas e territoriais brasileiras se espraiam entre ironias finas e lirismo lancinante) evoluem por caminhos imprevisíveis, com algo da tradição carioca (do samba e das marchinhas) e nordestina (frevo, xote, baião), além da erudição da música clássica.

Sua escrita tem a malícia cadenciada de Aldir Blanc, não por acaso autor de grande parte das letras de um parceiro de Amud, Guinga (sempre ele). Vejo relação com Pedro Carneiro, de quem os dois são amigos e também parceiros. Em conversa pós-show, o português JP Simões – que divide a noite de sábado com o baiano Tiganá Santana na mostra – comentou que a música de Amud é como se fosse “uma série de montanhas-russas emaranhadas”, mas longe de ser um destilado maluco, é uma justaposição de espelhos que se refletem numa progressão cinematográfica de possibilidades projetadas por um pensador da música. Em seu segundo álbum, por exemplo, há uma bela metáfora sobre a tese do fim da canção em “Outro Acalanto”, um réquiem composto para Dorival Caymmi (que ele viu morto no caixão), com referências a personagens e elementos que se tornaram clássicos no cancioneiro do patriarca baiano.

Pena que essa não entrou no roteiro do show, dividido entre quatro canções do álbum mais recente de Amud, “De Ponta a Ponta Tudo é Praia-Palma”, na primeira parte, e seis inéditas na segunda – o que criou grande expectativa por um próximo disco. De Guinga, que gravou voz no samba-canção “Irreconhecível” em seu primeiro álbum, “Sacradança” (2010), Amud cantou o xote “Brasileia”, parceria dos dois. De outro parceiro, Edu Kneip, veio outro xote “Catirina Desejosa”, inspirado na lendária personagem do folclore nortista do boi-bumbá, com citação do clássico “Hit the Road, Jack”, de Percy Mayfield, consagrado por Ray Charles, em adaptação arretada.

Do “Carnaval da Mesopotâmia”, do segundo CD, ele passou ao bloco de inéditas com outra insinuação de navegante estrangeiro, “Cinema Russo”, e outra com título tão curioso quanto a letra (“O Teu Coração: Superfície de Marte”). Encerrou a apresentação com o irônico frevo “Plano de Carreira”, que tem versos como “vou botar a imprensa de quatro por mim/ Que o refrão é fraco quando o marketing é ruim”. Bem, não é pela brincadeira com “ai se eu te pego” na letra que ele pegou esse “autista antenado” da mídia impressa.

Há muita gente fazendo música no mundo e no Brasil (território que sempre me interessou mais no campo sonoro/rítmico) e com a pulverização de avalanches de material produzido a cada semana, alguns podem passar despercebidos. Amud foi um desses que posso contar como falha no meu currículo de ouvinte, que acabo de corrigir.

Comprei seus dois discos e gostei mais do segundo, “De Ponta a Ponta Tudo é Praia-Palma”, título extraído da “carta de Pero Vaz de Caminha a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil”. Do primeiro para o segundo, é notável sua evolução como compositor, intérprete e arranjador. Mas achei bom demais vê-lo sozinho no palco, apenas com seu violão pulsante. Não é música fácil, mas aí é que está a graça da coisa, da forma como ele quebra a carcaça da subjetividade para expandir o manancial de informação sonoro e literário (e aqui agradeço a JP Simões, por mais essa imagem sobre o compositor). Aí é que está a chave da comunicação. E curiosamente, como me contou depois, o que ele menos faz nos discos é falar de si mesmo, situação que pode mudar no próximo trabalho.

Não posso dizer que foi uma descoberta, porque o termo implica em algo pioneiro, mas gosto da expressão “achamento”, como se refere à expedição que chegou por acaso ao Brasil virgem. E tem a ver com as impressões desse carioca de 34 anos sobre a qualidade da relação musical com Minas. “O que está acontecendo aqui em Belo Horizonte é uma referência pra mim que vim do Rio de Janeiro, em termos de riqueza musical, de convívio, trocas em vários níveis. Isso é muito gratificante”, disse Amud, que compõe desde os 15 anos.

Vale mais uma vez recorrer a Guinga que disse na segunda-feira que “o bom da música brasileira é que a gente pode atirar pra todo lado”. É o que vem fazendo William Serra, compositor desde 1993/94, que só tem material gravado de forma precária e passou por várias facetas. Já entrou na onda do samba, mas resolveu deixar essa parte de lado quando “até metaleiro virou sambista”, virou roqueiro, depois comprou uma conga e começou a compor boleros, e de um tempo pra cá entrou “na vida rural”, morando em Catas Altas, onde é proprietário de uma cafeteria.

É curioso como essas facetas de Serra se revelam influenciadas pela mudança de ambiente até chegar no ponto de compor uma canção como “Rapadura do Amor”, dando como referência o fato de sua mulher ser cozinheira. O tempo e a morte também são temas que brotam ao som de seu violão plangente que às vezes remete à melancolia da milonga sulista (como em “O Rio do Tempo”, composta a partir de um sonho em que ele se via morto e trouxe a analogia da ressurreição como se desperta do sono), às vezes do samba dolente de Cartola e Nelson Cavaquinho (em “Eu Vou lhe Deixar às Margens de Águas Correntes” e “Imaculada”). Em “Tropeçando nas Mesas” detecta-se a batida sincopada de Djavan do início da carreira.

Dos caminhos do rock que o levaram a gravar um disco de canções (“disponível no falecido MySpace”) ele passou à fase de boleros e compôs “Olha pro Céu”, menos inspirado em Luiz Gonzaga (cuja canção de mesmo título aparece como citação no final) e mais em Erich von Däniken (autor de “Eram os Deuses Astronautas?”), que tem relação com “O Teu Coração: Superfície de Marte” (de Amud), associando o amor ao cosmo.

No fim da apresentação de Amud, ele e Serra voltaram ao palco e, quebrando a proposta do projeto, improvisaram cantando juntos uma composição não autoral, “Castigo”, de Lupicínio Rodrigues, em versão desdramatizada, com humor quase paródico. Foi a melhor noite da mostra desde a abertura com Zé Miguel Wisnik, Guinga, Pedro Carneiro e Rafael Martini.

FUNARTE MG

TEATRO OI FUTURO KLAUSS VIANA

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