Diário das Alterosas (sábado, dia 6)

Por Leonardo Lichote – 14/12/14

Com saudável leviandade, costumo dizer que a canção popular é a forma mais elevada de arte que existe. Uma noite como a de sábado na Mostra Cantautores reforça essa ideia de forma tão sutil quanto convicta – isso acima de qualquer conceito de “música boa” ou “música ruim”. Dois sujeitos, dois violões e as forças do universo ali – sem pompa, com a potência do comum. Yin e Yang, trevas e luz, bem e mal, goiabada e queijo – equilíbrio, enfim.

Tiganá Santana é a placidez. No belo palco cru do festival (claro-escuro como a canção que é seu tema), o compositor baiano entra todo de branco, a pele preta, o canto grave e doce em línguas africanas como quicongo e quimbundo. Sua chegada é quase ritualística, à capella, com “Maçalê”. Seu violão de cinco cordas é dedilhado em arpejos ora simples, ora de compassos compostos que ecoam a polirritmia de tambores africanos – não à toa, ele chama seu instrumento, com uma corda grave na base causando um efeito originalíssimo, de violão-tambor. A África está nele mesmo quando ecoa um Cassiano angolano (“Para a poetisa íntima”) ou quando canta em inglês ou “francês criolizado” (“em homenagem aos africanos que redimensionam o idioma do opressor”), como explica ao falar da música que mostrou com a convidada Fabiana Cozza. Sua compreensão afro de seu lugar ali (e na música) é exposta de cara, quando ele afirma que “não há canção que não seja coletiva” e convoca a plateia a se manifestar da forma que quiser, com pedidos, perguntas ou o que fosse. Tiganá é o tipo de artista que remonta ao grandioso mesmo nos gestos simples, quando ao beber água diz, caymmicamente, que sente a secura do ar de Belo Horizonte porque “vim do mar”. É Caymmi, aliás, que ele homenageia em seu bis. Anunciado por ele como uma espécie de patrono dos cantautores brasileiros, o mestre aparece em sua voz não numa praieira, que seria tão linda quanto óbvia. Tiganá canta o samba-canção “Nunca mais” – mostrando que seu olhar vai mais fundo no fundo do mar da canção.

JP Simões é o nervosismo da fala rápida do português de Portugal, do humor cortante e veloz entremeado por canções que mesmo quando românticas são cortadas pela acidez, ou que mergulham na ideia do poeta do dark side. Ao ver uma barata no palco, dedica a ela uma canção e a batiza com intimidade (“Hey, George”). Seu ótimo violão, que conjuga a rapidez virtuosística do violão clássico, referências brasileiras (cita “Construção”, por exemplo) e a herança do bardo folk (sua safra mais recente é em inglês). Falante, ele lembra o Tom Waits que ouvia na adolescência, diz que “as pessoas no palco tem que ter convicção, e a minha especialidade é a desconvicção”, apresenta uma canção romântica dizendo que ela “tem um tema simples, que é tu e eu, o que não é nada simples”. Sempre cortando para um lado e para o outro, numa costura de natureza frenética (a calma das canções surge como contraponto). É calma a melodia na qual ele homenageia, com imagens poeticamente fortes, o estudante checo Jan Palach, que em 1969 ateou fogo ao próprio corpo como protesto contra a invasão de seu país pelas forças soviéticas (“You can fool the crowd/ You can wear a crown of stars/ (…) We will keep burning/ Like the sun”). Como Tiganá, seu espelho invertido naquela noite, ele passa por várias línguas. Seu Caymmi é Gainsburg, de quem canta “La javanaise”.

A canção é a forma mais elevada de arte que existe, enfim.

FUNARTE MG

TEATRO OI FUTURO KLAUSS VIANA

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