Balanço guingado

Por Lauro Lisboa Garcia – 16/12/14

Festivais de música são excitantes pra mim, especialmente os de longa duração em cidades fora do circuito paulistano ou carioca – não só pela oportunidade de viajar, mudar de ares, conhecer o trabalho de artistas novos, mas também pelo convívio diário em clima de camaradagem entre músicos, agregados, fãs, gente do público interessada em interagir e acompanhar o evento, que vira festa no sentido mais profundo da comunhão de alegrias.

Mal tinha saído daquele banho de musicalidade do 6º Choro Jazz Jericoacoara, que realizou uma de suas melhores edições este ano – com predominância da música instrumental e do jazz – e já mergulhei com o mesmo entusiasmo na 4ª Mostra Cantautores em Belo Horizonte. Duas propostas diferentes, duas batalhas de produtores corajosos e vitoriosos (Capucho em Fortaleza e Jeri, Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes, aliados a Makely Ka e Kristoff Silva, em BH).

É sintomático que Guinga seja o ponto de ligação entre os dois. O compositor que encerrou a primeira noite da Mostra, é referência tanto para o mago italiano da clarineta Gabiele Mirabassi (que se apresentou com Guinga em Fortaleza e Jeri em 2012 e voltou agora ao lado de outro prodígio, André Mehmari), como para os ascendentes Pedro Carneiro e Thiago Amud, dos quais é parceiro. Na viagem de volta ao aeroporto de Confins, conversei sobre isso com Tó Brandileone (que tem músicas com outro melodista e letrista de primeira grandeza, Celso Viáfora, também parte da história do Choro Jazz Jericoacoara e que caberia adequadamente nessa jornada mineira de cantautores) e ele reverenciou Guinga com entusiasmo.

É aquilo que se pode dizer de uma revolução sem derramamento de sangue. A tradução evolutiva da tradição que desenha a História por linhas tortas. Acho que o mineiro Sérgio Santos, escolhido para encerrar a Mostra Cantautores no domingo, é outro exemplar de compositor refinado dessa mesma linhagem. Não por coincidência, ele e Guinga têm parcerias antológicas com o poeta e letrista Paulo Cesar Pinheiro, e Santos tocou algumas dessas joias em seu show, acompanhado de seu violão percussivo.

Minas de todos os santos

Antes de tocar, Santos louvou a iniciativa dos conterrâneos e quem acompanhou a semana com atenção há de concordar com ele: “É uma honra encerrar essa mostra, que acho que é um tipo de evento exemplar, porque talvez seja disso que a gente esteja precisando em outros lugares do Brasil. É a possibilidade de a gente poder ouvir coisas novas, trocar idéias. Tenho certeza que essa semana toda foi extremamente rica pra todo mundo que pôde participar dela, tanto do ponto de vista musical mesmo, de conhecer o trabalho das pessoas, quanto dessa possibilidade de trocar idéias, porque foi bastante interessante saber o que as pessoas pensam a respeito dessa nossa atividade, que é tão bacana e tão visceral pra quem lida com a música.”

Santos, que foi protagonista de um encontro para falar de seu trabalho na sexta-feira, também acompanhou da plateia outros debates no sábado: um com o prodígio carioca Thiago Amud (que fez um dos melhores shows da mostra na quinta-feira), e outro com jornalistas de Minas (Kiko Ferreira e Daniel Barbosa), Rio (Leonardo Lichote, um dos mais brilhantes de sua geração) e São Paulo (um tal Lauro Lisboa Garcia, quase aposentado). Ou seja, Santos, como o igualmente talentoso e mineiro Pablo Castro (que mediou o encontro com ele e abriu seu show no domingo), além da excelência musical, é um artista interessado na abrangência desse universo e disposto a colaborar para a melhoria do cenário de quem vive de música.

Nesse mercado de políticas obscuras e cada vez mais injustas para quem trata a música como arte e não como objeto descartável de consumo e entretenimento, o compositor é sempre o último a ganhar crédito. Mauro Ferreira postou outro dia uma crítica contra o fato de o iTunes vender música sem citar os nomes dos autores, sem ficha técnica. Eu e Tó concordamos com ele. Nessas idas e vindas sobre o tema, a Mostra Cantautores oferece a seta e o alvo, uma vez que dá visibilidade ao compositor da maneira mais despojada, honesta e profissional.

Tiganá Santana, em sua sublime apresentação no sábado que tangeu o sagrado, convidou a plateia a interagir com ele durante o pequeno concerto. Santos fez questão de elogiar a qualidade técnica do som que ficou nas mãos de Bruno Corrêa (“está perfeito, parece que estou tocando dentro de um disco”) e pediu aplausos para Jennifer Souza e Luiz Gabriel Lopes: “É muito importante a batalha que eles tiveram pra construir esse evento”.

Santos e Tiganá homenagearam Dorival Caymmi (“talvez nosso primeiro cantautor a gravar um disco só de voz e violão”) no bis dos shows, convidando a plateia a cantar junto. Brandileone e Castro, bem como os roqueiros Vinikov e André Travassos e o português JP Simões, que já têm fãs conhecedores de algumas de suas canções presentes nos roteiros (como “A Lenda do Homem Pássaro”, de Simões, gravada pelo Graveola e o Lixo Polifônico), conversaram em canto conjunto com a plateia.

Todos esses componentes em ambientes de total amabilidade, para um público interessado e respeitoso em teatros adequados para esse tipo de música, proporcionaram momentos antológicos. Mesmo que alguns tenham demonstrado certo nervosismo no início das apresentações, logo se sentiram à vontade para experimentar sonoridades, mesmo que desafinadas, e tocar canções inéditas com talentos e soluções peculiares que cativaram os ouvintes de tal forma – como Guinga, Iara Rennó, William Serra, Thiago Amud, Tó Brandileone, Tiganá Santana, Laura Catarina, Pedro Carneiro, JP Simões –, que, como disse Guinga, isso é uma forma de fazer sucesso.

No início de seu show, Santos mostrou canções ainda não terminadas, o que deu bem a medida do caráter do evento, em que a maioria dos artistas abriu espaço para o ineditismo e a experimentação. Foram duas melodias cantaroladas que esperam letras de Paulo Cesar Pinheiro para um disco sobre a Amazônia. Para a primeira ele imaginou uma árvore enorme, antiga, que paira sobre a floresta e nos fez mentalizar imagens curiosas, bem como a segunda, com tema idealizado sobre um índio velho e sábio de todos os costumes de sua tribo.

Daí devem surgir mais joias sobre o Brasil profundo que ele e Pinheiro documentam a partir das matrizes africanas, evocadas no suingue do samba, na voz percussiva e na beleza do violão sincopado de Santos – que improvisou divertidamente até sobre o choro de uma criança na plateia – que se estendem ao frevo, à marcha-rancho, à bossa nova e ao samba-canção.

Meu nome é Pablo

Parceiro de Kristoff Silva e Makely Ka no revelador projeto “A Outra Cidade”, de 2003, Pablo Castro fez uma precisa síntese de seu trabalho solo, interpretando novas canções em parceria com esses representantes de uma geração mineira que se mantém firme. Algumas estão em seu primeiro disco solo, “Anterior”, como a canção-título, “Ponto Oriental” e “Moby Dick” (duas com seu parceiro mais constante, Luiz Henrique Garcia).

“Gatilho” foi uma das inéditas que ele antecipou e estarão em seu próximo disco, que, como o anterior, vem sendo gravado “a conta-gotas” e deve sair em 2015. Dentre outras referências, Castro tem uma sutil proximidade com o apelo sonoro do Clube da Esquina e tentou fazer essa associação até com Sérgio Santos, que por fim cedeu à sugestão e encerrou “Putirum” citando as clássicas como “Ponta de Areia” e “Clube da Esquina 2”. Dedicou a canção a Castro que, “além de grande compositor é um grande pesquisador e conhecedor de música”. “Minha música partiu de outros caminhos, mas de repente descobri essa conjunção com o Clube da Esquina”, disse Santos.

Tô com Tó

Antes deles se apresentou o jovem Tó Brandileone, compositor paulista integrante do grupo 5 a Seco, que cresce em popularidade entre o público adolescente. Revezando-se entre dois violões e dois microfones, Tó cantou músicas em parcerias com os outros integrantes do quinteto (Pedro Altério, Pedro Viáfora, Vinicius Calderoni e Leo Bianchini) e mostrou outras do disco solo “Ontem Hoje Amanhã”, em que divide autorias com Celso Viáfora e Ricardo Teté.

Vejo nele certas semelhanças com Dani Black (outro que brilharia numa mostra como essa), não por coincidência, porque ele também já foi do 5 a Seco. Como Dani, Tó tem o dom de compor canções redondas de apelo pop, tem carisma e bom humor, voz bonita e uma alegria juvenil que transcende a vontade de interagir com seus/suas fãs. É um rapaz talentoso que desenvolve linguagem própria dentro desse vasto nicho que alguns forjadores de clichês tentam inserir no genérico selo de “nova MPB”.

“Nessa mostra cabem esses pequenos riscos de experimentar composições novas”, disse Tó antes de apresentar “O Que Tinha de Ser”, dele e da portuguesa Luisa Sobral, uma das boas inéditas de seu repertório. Logo resolveu correr risco maior ainda ao apresentar uma peça com 8 minutos de duração, um tema canto-falado da maneira como compôs em casa com loops criados no computador sobre a bela e longa crônica “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos. Foi um dos momentos mais inusitados de seu show e da mostra, não só pela intervenção eletrônica, mas pela beleza da adaptação musical e pela força da interpretação que arrebatou a plateia. De imediato lembrei de Caetano Veloso lendo “Americanos” ao final de “Black or White” no show “Circuladô” em 1992.

Ele também continuou na “sessão risco” em “malabarismo tecnológico” com os pedais, fazendo um dueto com a própria voz em outra boa das inéditas, “Melhor Assim” (parceria com Pedro Altério), que é um diálogo entre duas pessoas e tem o que chamam de “potencial radiofônico”. Na sequência veio outra nova da dupla “Quem Sabe?”, inspirada no “Livro das Perguntas”, de Pablo Neruda.

Outra das mais bacanas é a também recente “Eu Amo Djavan, gravada no disco “Policromo”, do 5 a Seco. “Ela fala um pouco dessa magia que tem na nossa música, de às vezes a gente cantar refrões ou versos ou coisas que não necessariamente têm no dicionário em português, que são só fonemas inventados, mas que carregam dentro deles algum sentido”, disse. O toque de Lenine (que gravou com ele no disco solo) faz o link com Djavan, duas notáveis referências rítmico-melódicas de Tó, em “Deixe Estar”, que o público também cantou junto com ele. E pra terminar, “Relatividade”, parceria com Celso Viáfora. Em resumo, boa companhia não lhe falta.

Peço desculpas a Luiza Brina por ter perdido sua apresentação e aproveito para agradecer a música que ela cantou a meu pedido na festa de encerramento da mostra, no Mercado Distrital do Cruzeiro. Por ali também passaram Leopoldina (que voz linda e que doçura de mulher!) e Vander Lee, além de Chico César, Lucas Santtana e o cabo-verdiano Dino D’Santiago, vindos de outros festivais na cidade. Quando Dino cantou “Sodade” machucou. É o que estávamos todos sentindo de uma semana incrível. Que venham muitas outras como essa.

FUNARTE MG

TEATRO OI FUTURO KLAUSS VIANA

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