Ah, Portugal-Bahia…

Por Lauro Lisboa Garcia – 14/12/14

“Fado é na ponta da língua/ samba é na ponta do pé”, diz uma terna canção de Luiz Melodia, simbólica figura da música preta brasileira, que furou expectativas quando desceu do Morro de São Carlos pra se fazer notar com seu sotaque de ritmo e blues e outras mumunhas mais eliminando o chavão do sambista. Igualmente, Tiganá é uma joia distante do que o senso comum da euforia carnavalesca prevê de um baiano contemporâneo, da mesma maneira como o português JP Simões não redunda nas lamúrias do (en)fado, como nos acostumamos a ouvi-lo brincar antes das antológicas apresentações dos dois, no sábado, na 4ª Mostra Cantautores, em Belo Horizonte.

“Dessa boba brincadeira” que reverberou durante toda a semana em minha cabeça/língua na expectativa pelos shows de ontem, o verso de “Maria Particularmente”, de Melodia, que mais me fez sentido para ilustrar essa fusão franco-afro-luso-brasuca foi “flor que o vento sopra pro mar”, balizando o movimento das ondas a bordo desses barcos negreiros até os ancestrais de colonizador e colonizado. Um preto e um branco unidos pela poesia em forma de música, de alguma forma enlaçados por tradições de matrizes arábico-africanas, em forças de expressão multilíngüe (português, inglês, francês, italiano, idiomas de países africanos, como o kimbundo angolano) que desembocam na língua de Camões e na capital primeira do Brasil, berço do samba de Dorival Caymmi, que Tiganá homenageou no fim de sua apresentação.

Tiganá, que está prestes a lançar o terceiro disco, “Tempo & Magia” (gravado no Senegal, com músicos de lá e de países vizinhos), é a resposta sóbria e a reverência arrojada à maternidade africana. Seu primeiro álbum, “Maçalê” (2009) é todo composto de canções em idiomas falado no continente de matéria-prima musical mais pulsante do planeta, e o segundo, “The Invention of Color” (2012), foi gravado na Suécia com vários convidados. É um exemplar fenômeno brasileiro de reconhecimento internacional, que ainda não teve a devida repercussão no país natal. “É uma honra, uma alegria estar aqui, fazer parte da Mostra Cantautores, tão importante, porque trata a respeito dos compositores, num contexto em que os compositores são normalmente esquecidos. Então é uma beleza isso tudo”, disse ele.

De volta a BH depois de quatro anos, Tiganá começou a apresentação cantando “Maçalê” a capella, depois seguiu com seu violão de cinco cordas, que não tem o primeiro Mi. “A composição dele é Si, Sol, Ré, Lá, Mi, tem baixos em cima e baixos embaixo, dá uma ideia de perguntas e respostas, como a gente diz”, explicou. “E mesmo dedilhando, dá uma ideia percussiva talvez. Eu chamo de violão-tambor, por conta da textura mais médio-grave. São freqüências que acho que tem um pouco mais a ver também com meu registro vocal. Então, foi fruto mesmo de uma investigação até chegar a este violão, que apresentei em meu segundo disco.”

Depois de abrir espaço para intervenções da plateia, disse que “não há criação, não há composição que não seja coletiva”. A propósito, a segunda de sua apresentação, “Bwanana”, cantada em kikongo, é uma canção “que trata do fato de a gente só ter oportunidade de prosseguir porque houve pessoas, territórios e situações, espíritos, etc., que nos antecederam”. Fiel a esse princípio, ele fechou o círculo no bis, reinterpretando lindamente a seu estilo “Nunca Mais”, do mestre Caymmi.

A música de Tiganá é plena de uma religiosidade menos ritualística e mais meditativa. Amiga dele, Fabiana Cozza, que estava na plateia, foi convidada para cantar “Le Mali Chez la Carte Invisible”, que ela acaba de gravar em seu novo disco, assim como “Mama Kalumba”, que Tiganá interpretou sozinho antes. Unidos pela espiritualidade, ambos proporcionaram o momento de maior comoção em toda a mostra pela profundidade e beleza da canção, das vozes e da interpretação. Conforme disse Fabiana depois, Tiganá tem “essa conexão do sagrado com a coisa contemporânea porque ele exercita o sagrado todo dia”. E é notável, a partir desse belo dueto ao vivo, como a relação com o compositor influi na modulação vocal da cantora.

O obstáculo da letra em francês, como as demais em idiomas africanos que não compreendemos, é vencido de forma transcendental. “A África está dentro das crianças, mas o mundo está fora”, diz o final de “Le Mali…”. Tiganá explicou que a canção “trata do ser humano a partir do continente africano, especificamente a partir do Mali, e nesse tema usei um francês um tanto criolizado na sua estrutura, como resposta à colonização francesa em muitos desses países africanos que têm o francês como segunda, terceira ou quarta língua, e redimensionam o idioma do opressor trazendo-o à baila de uma outra forma”.

Houve momentos em que fiquei pensando sobre como Tiganá poderia ser a personificação da “lágrima clara sobre a pele escura” (como Caetano Veloso escreveu em “Desde Que o Samba é Samba”), ele todo vestido de banco, um homem grande de voz doce e hipnotizante e a serenidade de um Gandhi nagô. E a noite e a chuva que caíam lá fora, enquanto o teatro da Funarte se inundava de poesia.

Curiosamente, JP Simões terminou sua apresentação com “La Javanaise”, do francês Serge Gainsbourg, que tem tudo a ver com seu estilo noturno de “português mais deprimido de toda a Península Ibérica”. Porém, como grande parte dos compositores e cantores densos, ele destilou o nervosismo e a melancolia oferecendo doses generosas de bom humor. No bis, por exemplo, atendeu a pedidos para interpretar a irônica “Gosto de Me Drogar”.

Voz curtida no tabaco e no álcool, em paralelo com cantautores como Daniel Melingo, Leonard Cohen e Tom Waits – não por acaso mencionado por ele em “Hei, Georgie”, num momento de ironia kafkaniana, quando uma barata passou a zanzar pelo palco e depois foi delicadamente retirada por alguém da produção –, Simões, que já teve banda de rock, injetou substâncias profanas de melancolia e humor corrosivo, com impactante performance ao violão de acento folk. Artista veterano com vários álbuns lançados desde meados dos anos 1990, ele me disse, já com uma ponta de saudade pela prazerosa semana que findava na noite de domingo, que sua carreira está “começando agora” – talvez mais uma expressão de fina ironia.

Alguns o relacionam a Nick Drake, mas seu estilo tem algo de David Bowie e Paul Simon também, especialmente em “Jan Palach” (sobre o estudante que cometeu suicídio em 1969 como forma de protesto contra a invasão da República Checa pela então União Soviética), cuja introdução remete a “April Come She Will”. “Estou a tentar pertencer a alguma tribo, mas nenhuma me aceita”, ironizou.

A “Utopia da Conceição” ele acrescentou versos de “Construção”, de Chico Buarque, em letra reformulada, e “A Lenda do Homem Que Virou Pássaro” consolidou o vínculo com o Brasil, uma vez que foi gravada pelo Graveola e o Lixo Polifônico, grupo que tem com um dos integrantes Luiz Gabriel Lopes, idealizador da Mostra com Jennifer Souza. “Inquietação” foi a única de suas canções com ligeira aproximação do fado.

É curioso como em diferentes impressões do público houve quem notasse referências de Baden Powell ou de Paco de Lucia (quando se aproxima da música árabe que gerou o flamenco) no refinado e virtuoso toque de Simões ao violão. Como parte do traçado irônico, com letras narrativas próprias de sua ligação com cinema, entre canções de grande beleza, incluindo a autobiográfica ”You and I”, ele tocou “Dança da Chuva” no momento em que engrossava o toró do lado de fora, o que deve ter prejudicado o festival Toca Raul, que rolava bem perto, na Praça da Estação.

Foi mais uma noite memorável na Mostra Cantautores, coroando um dia intenso, que começou com uma conversa com Thiago Amud –, que possibilitou conhecer melhor a pessoa do ponto de vista filosófico, além do grande artista que brilhou na noite de quinta-feira . A esse encontro seguiu-se um longo debate mediado pelo compositor e poeta Makely Ka (“Artistas, público, imprensa: onde está o gargalo?”), do qual participei um tanto encabulado por receio de falar besteira, munido do meu habitual pânico de microfones, câmeras e plateias. O papo ao lado de Leonardo Lichote, Kiko Ferreira e Daniel Barbosa foi tão sério (e espero que tenha contribuído com alguma no meio de tanta gente bacana, talentosa, inteligente, conhecedora de causa e bem-intencionada) que desisti de dançar na boquinha da garrafa, como vinha ameaçando de zoeira a semana toda. Bebi da latinha mesmo.

FUNARTE MG

TEATRO OI FUTURO KLAUSS VIANA

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